Sarah acordou sobressaltada de um sonho estranho. Não
conseguia se lembrar ao certo sobre o que era, mas sabia em seu coração que não
fora nada bom. Mesmo numa noite fria como aquela estava suada e sentia um leve
formigamento na palma de suas mãos.
Deitou-se de lado para tentar dormir novamente, mas sentiu
um leve incomodo na garganta. A sede lhe assaltara de forma que agora
incomodava e a forçava a ir até a cozinha. Isso a irritou, mas sabia que se não
o fizesse, não conseguira voltar a dormir.
Lentamente se sentou na beirada da cama, calçou um pé do
chinelo e tateou com um pé descalço na escuridão do quarto a procura do outro.
Assim que o calçou se pôs de pé e caminhou lentamente até a porta, ainda
remoendo a sensação do pesadelo. Aquela maldita mansão velha a enchia de medo e
calafrios. Durante a noite todo o piso e o telhado estavam constantemente. Quando
estava quase pegando na maçaneta, teve um segundo de vacilo e voltou para perto
da cama. Apenas a luz da lua cheia não seria o suficiente. Acendeu um pequeno abajur
que ficava ao lado da cama se sentiu mais confiante agora. Com passos decididos
e firmes atravessou o quarto novamente e num único movimento abriu a porta.
Não havia ninguém. Samuel deveria estar
ali. Ele havia sido designado pelo pai de Sarah para fazer a guarda da porta da
filha. Aqueles eram tempos difíceis e nenhuma brecha poderia ser dada. A ausência
de seu guarda fez com que a menina vacilasse. Samuel era obediente e nunca
abandonava seu posto. Levemente Sarah tocou o batente da porta e sentiu que
ainda estava quente, como se ele estivesse encostado ali a poucos instantes. Era
uma noite fria e provavelmente seu guardião deveria ter ido ao banheiro. Esse
pensamento fez com que ela relaxasse. Assim que tencionou as pernas para dar o
primeiro passa para o corredor que levava até as escadas, sentiu uma leve
picada em seu tornozelo. O tapete estava novamente infestado de pulgas. Aquilo
a irritou de maneira tal que acabou por esquecer-se do pesadelo e do sumiço de
Samuel.
Tentando coordenar suas passadas pelo corredor com breves
coçadas no tornozelo, ela venceu a distancia até as escadas e se deparou com o
salão interior da mansão. Nele havia corredores que direcionavam par o salão de
entrada, logo a frente, para algumas salas de estudo, biblioteca, banheiros,
dormitórios dos empregados e cozinha. Este último lugar sendo seu destino e
lugar de interesse. Ao vislumbrar o amplo salão vazio, apenas iluminado pela
luz prateada de Luna que tocava a mobília, os quadros e a tapeçaria, Sarah
sentiu um leve arrepio subir por suas costas. Não sabia ao certo se era o medo voltando
a apertar o peito ou o frio invadindo as pernas de seu pijama curto.
Degrau a degrau ela desceu as escadas, com sua mão suada
tocando o corrimão gelado de metal. Os sons da casa ainda a assustavam, mas ela
continuou. Seguiu com passos apertados e rápidos, passou pela lateral da escada,
ouviu um ou outro barulho vindo dos alojamentos dos empregados... Ora um ronco,
roa um gemido de alguma fornicação. Ela chegou a ter um relance de curiosidade,
mas um estalo um pouco mais forte no piso a fez voltar a ideia original.
Deu uma corridinha de leve pelo corredor e finalmente chegou
até a cozinha. Sem muita cerimonia abriu a geladeira, bebeu água direto no
gargalo, deu umas duas mordidas num pedaço de queijo amarelo, beliscou um
pedaço da carne assada do jantar e deu mais um gole na água. Agora com a sede
saciada e o estômago acalmado parecia que os últimos minutos não haviam
acontecido.
Displicentemente Sarah se pôs a caminhar de volta par seu
quarto. Mas depois de pouco mais que quatro pares de passo ela ouviu a porta de
madeira da cozinha se abrindo. Ela não quis acreditar, mas teve certeza que era
a porta que dava para o lado de fora da casa. Seu estômago se embrulhou e
sentiu tudo se azedando dentro de si. A comida quis voltar par fora e a bexiga
quase se soltou. Suas pernas bambearam e ela sentiu como se o sangue
abandonasse o rosto e os braços. Por uma fração de segundo pensou em seu pai e
logo depois em Samuel. Onde o maldito estava?
A menina conseguiu ouvir a respiração do invasor. Era
gutural e arrastada. Pesada como chumbo. Quando entrava era forçada para
dentro, como se estivesse a farejar o ar e quando saia parecia um leve rosnar
de alguma besta. Ela ainda percebeu quando o invasor se pôs a andar. Era alguma
coisa grande, pois a batida de seus pés no assoalho, por mais que parecessem
ser cuidadosas faziam barulho. E o pior, parecia que possuía garras. Seu pirar
era como o de um cachorro quando suas unhas batem no chão de madeira, só que
muito mais assustador.
Assim que ela percebeu parte da natureza do invasor, arrumou
forças de algum lugar se forçou a correr. De início tropeçou nas pernas, mas
logo depois estava a trote firme. Mas, para sua infelicidade o invasor percebeu
sua manobra e também começou a correr. Assim que ela chegou ao salão principal,
o invasor a alcançou. Primeiro ela ouviu um rosnar baixo e logo depois, com um
leve movimento de braço, ele a derrubou no chão e pousou sobre ela. Os olhos
verdes da besta fitavam os de Sarah como se saboreasse se medo. Ela estava tão
abalada com aquilo que em sua cabeça ela estava gritando a plenos pulmões, mas
na verdade apenas soltava um leve guinchado pela boca escancarada. Ele lambeu o
pescoço dela. Sua saliva era muito quente e parecia ser ácida, fazendo com que
a menina sentisse grande ardência onde ela tocara. O animal não falava, apenas
rosnava e mostrava os dentes em sua boca descomunal e escancarada, arranhava o
piso de madeira, arrancando grandes lascas, como forma de ameaça. Mas não
parecia que iria mata-la ou comê-la. Pelo menos não naquele momento, não ali.
Num movimento ágil, ele se colocou de pé e com apenas uma mão
agarrou Sarah pela cintura, a colocou sobre o ombro e voltou a se dirigir para
o corredor da cozinha. A essa altura ela já havia esvaziado a bexiga diante de
tanto terror. Em um momento estava deitada em sua cama, com seu travesseiro de
penas e agora estava sobre um colchão de pelos negros, duros, sujos, molhados e
fedidos, sendo levada para onde nem queria imaginar. O invasor seguia rápido,
quase de quatro, por ora usando seu braço livre como um apoio para impulsionar
seu avanço.
Quando estavam prestes a cruzar o arco que unia o corredor a
cozinha, Sarah percebeu que marcha parou. Agora o invasor sacudia de um lado
par outro. Em um instante o braço que a segurava sobre seu ombro se afrouxou se
mudou de ponto de interesse. Ela aproveitou para escorregar pelas costas do monstro
e chegar ao chão, mas não sem antes experimentar a péssima sensação de passar
pela cauda peluda do invasor.
Agora no chão, ela viu o invasor, um ser asqueroso de pelos
longos, ombros largos e braços fortes, com a cabeça quase chegando até o teto,
lutar com alguma coisa a sua frente. Ele estremecia freneticamente, alguma
coisa a na sua frente o havia pego, o golpeava e parecia que o segurava de
forma firme, pois ele tentava se curvar, mas não conseguia.
Aos poucos um cheiro de ferro tomou conta do ar. A menina
então percebeu que uma enorme poça estava se formando aos pés de seu sequestrador.
Aos pouco, conforme a poça ia aumentando, ela percebeu que o corpo do invasor
ia perdendo as forças. Seus movimentos estavam cada vez mais fracos, mais
fracos e sem vontade. Até que ele ficou completamente inerte. Por um momento
ela sentiu um alivio tão grande que se permitiu começar a chorar. Mas logo
voltou a ficar apreensiva. Se um monstro daquele fora abatido de forma tão
eficiente, o que a aguardava dentro da cozinha? Desta vez ela não conseguiu nem
se mover. Viu o corpo do seu sequestrador regredir. Aos poucos os pelos diminuíram,
os membros encurtaram, a cabeça voltou a ser como a de um homem e a cada deixou
de existir. No final havia apenas um homem magricelo e de cabelos negros, preso
pelo pescoço dentro da boca de um animal tão grotesco como ele um dia fora. O
ser que segurava o homem dentro de sua boca era um pouco mais baixo, mas muito
mais forte. Peitoral largo como um barril, braços que pareciam pernas, seu pelo
era curto e branco como a neve, seu fuço era curto, mas, em compensação, sua
mandíbula era larga como nos cães “bull terrier”.
Sarah estava cega de medo e a visão do homem morto
despencando de dentro daquela boca cheia de dentes e sangue a fez desmaiar.
Quando acordou estava deitada em sua cama. Sentiu novamente
uma maldita pulga picando seu pé. Ela percebeu que seu pai dormia em uma
cadeira no canto do quarto e o grande monstro de pelo branco dormia ao lado de
sua cama, quase colado a ela. Agora ela percebeu que era Samuel. Ela deu um
leve sorriso, aliviada. Suas feridas estavam tratadas, sua pele limpa e sua
roupa trocada. Ainda deitada na cama ela viu que Samuel acordou. Ele girou sua
enorme cabeça de lobo-homem para ela, a olhou com seu olhos amarelos como se
perguntasse como ela se sentia. Sarah simplesmente sorriu, deixou que sua mãos deslizasse
para fora, sobre o pelo de seu guardião. Ele, sentindo o toque e o afago de sua
protegida, apoiou a cabe sobre os braços e cerrou os olhos.
Sarah, fechou os olhos também e relembrou de tudo que
aconteceu. Por um segundo voltou a se alarmar, mas o toque do pelo de Samuel em
suas mãos, aliado ao movimento de sua respiração tranquila, fez com ela novamente
adormecesse e não temesse mais nada naquela noite.