quarta-feira, 29 de maio de 2013

Sobre pulgas, medo e amizade

Sarah acordou sobressaltada de um sonho estranho. Não conseguia se lembrar ao certo sobre o que era, mas sabia em seu coração que não fora nada bom. Mesmo numa noite fria como aquela estava suada e sentia um leve formigamento na palma de suas mãos.

Deitou-se de lado para tentar dormir novamente, mas sentiu um leve incomodo na garganta. A sede lhe assaltara de forma que agora incomodava e a forçava a ir até a cozinha. Isso a irritou, mas sabia que se não o fizesse, não conseguira voltar a dormir.

Lentamente se sentou na beirada da cama, calçou um pé do chinelo e tateou com um pé descalço na escuridão do quarto a procura do outro. Assim que o calçou se pôs de pé e caminhou lentamente até a porta, ainda remoendo a sensação do pesadelo. Aquela maldita mansão velha a enchia de medo e calafrios. Durante a noite todo o piso e o telhado estavam constantemente. Quando estava quase pegando na maçaneta, teve um segundo de vacilo e voltou para perto da cama. Apenas a luz da lua cheia não seria o suficiente. Acendeu um pequeno abajur que ficava ao lado da cama se sentiu mais confiante agora. Com passos decididos e firmes atravessou o quarto novamente e num único movimento abriu a porta.

Não havia ninguém. Samuel deveria estar ali. Ele havia sido designado pelo pai de Sarah para fazer a guarda da porta da filha. Aqueles eram tempos difíceis e nenhuma brecha poderia ser dada. A ausência de seu guarda fez com que a menina vacilasse. Samuel era obediente e nunca abandonava seu posto. Levemente Sarah tocou o batente da porta e sentiu que ainda estava quente, como se ele estivesse encostado ali a poucos instantes. Era uma noite fria e provavelmente seu guardião deveria ter ido ao banheiro. Esse pensamento fez com que ela relaxasse. Assim que tencionou as pernas para dar o primeiro passa para o corredor que levava até as escadas, sentiu uma leve picada em seu tornozelo. O tapete estava novamente infestado de pulgas. Aquilo a irritou de maneira tal que acabou por esquecer-se do pesadelo e do sumiço de Samuel.

Tentando coordenar suas passadas pelo corredor com breves coçadas no tornozelo, ela venceu a distancia até as escadas e se deparou com o salão interior da mansão. Nele havia corredores que direcionavam par o salão de entrada, logo a frente, para algumas salas de estudo, biblioteca, banheiros, dormitórios dos empregados e cozinha. Este último lugar sendo seu destino e lugar de interesse. Ao vislumbrar o amplo salão vazio, apenas iluminado pela luz prateada de Luna que tocava a mobília, os quadros e a tapeçaria, Sarah sentiu um leve arrepio subir por suas costas. Não sabia ao certo se era o medo voltando a apertar o peito ou o frio invadindo as pernas de seu pijama curto.

Degrau a degrau ela desceu as escadas, com sua mão suada tocando o corrimão gelado de metal. Os sons da casa ainda a assustavam, mas ela continuou. Seguiu com passos apertados e rápidos, passou pela lateral da escada, ouviu um ou outro barulho vindo dos alojamentos dos empregados... Ora um ronco, roa um gemido de alguma fornicação. Ela chegou a ter um relance de curiosidade, mas um estalo um pouco mais forte no piso a fez voltar a ideia original.

Deu uma corridinha de leve pelo corredor e finalmente chegou até a cozinha. Sem muita cerimonia abriu a geladeira, bebeu água direto no gargalo, deu umas duas mordidas num pedaço de queijo amarelo, beliscou um pedaço da carne assada do jantar e deu mais um gole na água. Agora com a sede saciada e o estômago acalmado parecia que os últimos minutos não haviam acontecido.

Displicentemente Sarah se pôs a caminhar de volta par seu quarto. Mas depois de pouco mais que quatro pares de passo ela ouviu a porta de madeira da cozinha se abrindo. Ela não quis acreditar, mas teve certeza que era a porta que dava para o lado de fora da casa. Seu estômago se embrulhou e sentiu tudo se azedando dentro de si. A comida quis voltar par fora e a bexiga quase se soltou. Suas pernas bambearam e ela sentiu como se o sangue abandonasse o rosto e os braços. Por uma fração de segundo pensou em seu pai e logo depois em Samuel. Onde o maldito estava?

A menina conseguiu ouvir a respiração do invasor. Era gutural e arrastada. Pesada como chumbo. Quando entrava era forçada para dentro, como se estivesse a farejar o ar e quando saia parecia um leve rosnar de alguma besta. Ela ainda percebeu quando o invasor se pôs a andar. Era alguma coisa grande, pois a batida de seus pés no assoalho, por mais que parecessem ser cuidadosas faziam barulho. E o pior, parecia que possuía garras. Seu pirar era como o de um cachorro quando suas unhas batem no chão de madeira, só que muito mais assustador.

Assim que ela percebeu parte da natureza do invasor, arrumou forças de algum lugar se forçou a correr. De início tropeçou nas pernas, mas logo depois estava a trote firme. Mas, para sua infelicidade o invasor percebeu sua manobra e também começou a correr. Assim que ela chegou ao salão principal, o invasor a alcançou. Primeiro ela ouviu um rosnar baixo e logo depois, com um leve movimento de braço, ele a derrubou no chão e pousou sobre ela. Os olhos verdes da besta fitavam os de Sarah como se saboreasse se medo. Ela estava tão abalada com aquilo que em sua cabeça ela estava gritando a plenos pulmões, mas na verdade apenas soltava um leve guinchado pela boca escancarada. Ele lambeu o pescoço dela. Sua saliva era muito quente e parecia ser ácida, fazendo com que a menina sentisse grande ardência onde ela tocara. O animal não falava, apenas rosnava e mostrava os dentes em sua boca descomunal e escancarada, arranhava o piso de madeira, arrancando grandes lascas, como forma de ameaça. Mas não parecia que iria mata-la ou comê-la. Pelo menos não naquele momento, não ali.

Num movimento ágil, ele se colocou de pé e com apenas uma mão agarrou Sarah pela cintura, a colocou sobre o ombro e voltou a se dirigir para o corredor da cozinha. A essa altura ela já havia esvaziado a bexiga diante de tanto terror. Em um momento estava deitada em sua cama, com seu travesseiro de penas e agora estava sobre um colchão de pelos negros, duros, sujos, molhados e fedidos, sendo levada para onde nem queria imaginar. O invasor seguia rápido, quase de quatro, por ora usando seu braço livre como um apoio para impulsionar seu avanço.

Quando estavam prestes a cruzar o arco que unia o corredor a cozinha, Sarah percebeu que marcha parou. Agora o invasor sacudia de um lado par outro. Em um instante o braço que a segurava sobre seu ombro se afrouxou se mudou de ponto de interesse. Ela aproveitou para escorregar pelas costas do monstro e chegar ao chão, mas não sem antes experimentar a péssima sensação de passar pela cauda peluda do invasor.
Agora no chão, ela viu o invasor, um ser asqueroso de pelos longos, ombros largos e braços fortes, com a cabeça quase chegando até o teto, lutar com alguma coisa a sua frente. Ele estremecia freneticamente, alguma coisa a na sua frente o havia pego, o golpeava e parecia que o segurava de forma firme, pois ele tentava se curvar, mas não conseguia.

Aos poucos um cheiro de ferro tomou conta do ar. A menina então percebeu que uma enorme poça estava se formando aos pés de seu sequestrador. Aos pouco, conforme a poça ia aumentando, ela percebeu que o corpo do invasor ia perdendo as forças. Seus movimentos estavam cada vez mais fracos, mais fracos e sem vontade. Até que ele ficou completamente inerte. Por um momento ela sentiu um alivio tão grande que se permitiu começar a chorar. Mas logo voltou a ficar apreensiva. Se um monstro daquele fora abatido de forma tão eficiente, o que a aguardava dentro da cozinha? Desta vez ela não conseguiu nem se mover. Viu o corpo do seu sequestrador regredir. Aos poucos os pelos diminuíram, os membros encurtaram, a cabeça voltou a ser como a de um homem e a cada deixou de existir. No final havia apenas um homem magricelo e de cabelos negros, preso pelo pescoço dentro da boca de um animal tão grotesco como ele um dia fora. O ser que segurava o homem dentro de sua boca era um pouco mais baixo, mas muito mais forte. Peitoral largo como um barril, braços que pareciam pernas, seu pelo era curto e branco como a neve, seu fuço era curto, mas, em compensação, sua mandíbula era larga como nos cães “bull terrier”.
Sarah estava cega de medo e a visão do homem morto despencando de dentro daquela boca cheia de dentes e sangue a fez desmaiar.

Quando acordou estava deitada em sua cama. Sentiu novamente uma maldita pulga picando seu pé. Ela percebeu que seu pai dormia em uma cadeira no canto do quarto e o grande monstro de pelo branco dormia ao lado de sua cama, quase colado a ela. Agora ela percebeu que era Samuel. Ela deu um leve sorriso, aliviada. Suas feridas estavam tratadas, sua pele limpa e sua roupa trocada. Ainda deitada na cama ela viu que Samuel acordou. Ele girou sua enorme cabeça de lobo-homem para ela, a olhou com seu olhos amarelos como se perguntasse como ela se sentia. Sarah simplesmente sorriu, deixou que sua mãos deslizasse para fora, sobre o pelo de seu guardião. Ele, sentindo o toque e o afago de sua protegida, apoiou a cabe sobre os braços e cerrou os olhos.

Sarah, fechou os olhos também e relembrou de tudo que aconteceu. Por um segundo voltou a se alarmar, mas o toque do pelo de Samuel em suas mãos, aliado ao movimento de sua respiração tranquila, fez com ela novamente adormecesse e não temesse mais nada naquela noite.

Um comentário:

Unknown disse...

Cara que show esse texto!!!