Um leve roçar de brisa no rosto de Saim fez com ele
despertasse. Mas como quem tem grande preguiça, permaneceu deitado de olhos
fechados, apenas sentindo o solo sob suas costas. Mais alguns segundos e tentou
se mover. Uma dor aguda assaltou sua cabeça. Era como se um machado de guerra
estivesse brandindo lá dentro. Era a nítida sensação de uma ressaca violenta.
Já que estava na merda, ele resolveu voltar a dormir, mas não conseguiu. A dor
de cabeça estava tão violenta q atrapalhou até isso. Resignado, se forçou a
abrir os olhos e viu o céu. Estava completamente escuro, sem lua, sem estrelas,
sem nuvens, sem nada.
Aquilo fez a cabeça de Saim doer ainda mais. Ele não lembrava
onde estava e nem como havia chegado ali. Sentou-se e viu que estava em uma
espécie de deserto de areias negras, tão negras quanto o céu sobre sua cabeça. Cambaleante
ele se levantou e sentiu novamente a brisa no seu rosto. Agora ela era mais
forte e carregava um pouco de areia consigo. Ao olhar para as mãos, percebeu
que havia retornado a sua forma natural. Aqueles que eram chamados de impuros
dentro de sua espécie eram tidos como párias e com ele não havia sido
diferente.
Os impuros nascem da união de dois lobisomens que possuem o
gene recessivo que os permitam transmutar entre as formas de homem, lobo e lobo
homem. Essa união é abominada e evitada a todo o custo. Mas o coração age de
formas muito mais agressivas do que a razão é capaz de controlar. O amor é
belo, mas cobra um preço altíssimo. Todos os que nascem dessa união são
marcados de formas grotescas para que sejam vistos por todos como uma mácula dentro
da sociedade. E com Saim a mácula foi pesada e cruel. Ao contrário de todos os
outros, não possuía pelo algum em nenhuma de suas formas. Um homem careca, um
lobo pelado e um lobisomem de pele asquerosa e grossa como couros de
paquiderme. Como um coroa da deformidade, na sua forma de lobo-homem ainda
tinha um par de chifres crescendo nas laterais da cabeça. Eles se enrolavam
para trás, como os de um bode adulto. Ah esses chifres malditos. De tudo era o
que mais incomodava Saim. Tanto que era comum vê-lo passando os dedos sobre
eles, como se avaliasse sua espessura, comprimento e se estavam a crescer mais.
Atualmente ele converteu este gesto de afagar os chifres como uma forma de
centrar o pensamento, exatamente como um homem afaga sua barba quando se põe a
refletir sobre algo.
Entretanto, fora sua aparência bizarra, era um exímio
lutador. Nascido sobre a luz de Luna em sua forma completa nos céus, fora
banhado por toda a sua claridade e recebeu de Gaia, como presente ou
compensação, toda a sua fúria estocada em seu coração. Graças a isso, conseguiu
angariar algum respeito e consideração dentro de seu grupo, podendo até mesmo
almejar algum dia uma posição de prestígio ou liderança.
Agora ele vagava sem rumo por aquele areal infinito, não
importava qual duna escalasse, qualquer que fosse sua escolha baseada em sua
altura, ele apenas via imensidão, mais imensidão e mais imensidão de areias
negras, cobertas por um céu igualmente negro. O vento estava aumentando,
fazendo com que constantemente sua visão fosse parcialmente cegada.
Aos poucos, conforme caminhava indefinidamente por aquele
lugar morto, a memória foi retornando. Lembrou-se da batalha em Agreva, a
floresta de cipós azuis. Ela avia sido maculada, estava sendo devastada pelos
lacaios malditos, tomada pela poluição, totalmente manchada de negro. Saim e
mais uma dúzia de voluntários foram enviados para combater os seres tóxicos e
suas máquinas amarelas. Chegaram de forma furtiva, divididos em três grupos,
mas havia um maldito traidor. Bem, não se sabe se era um traidor ou se estava possuído.
Saim viu quando um dos grupos teve sua localização entregue pelo traidor que,
assim que cumpriu sua missão pareceu tomar noção do que fez e se suicidou,
abrindo sua garganta com uma adaga de prata que ele roubou de um parceiro ao
seu lado. Mas mesmo com o grupo perdendo
um terço de sua força de ataque eles seguiram adiante. Com os lacaios
entretidos em trucidar o primeiro grupo, os outros dois partiram com toda ferocidade
para suas costas, e fizeram o que faziam de melhor, abriram tantas gargantas
quanto fora possível. Um mar de sangue podre de misturou ao dos lobos-homem que
foram sacrificados no início da carnificina. Os filhos a mãe Terra estavam se
saindo vitoriosos. Estavam terminando de matar os últimos malditos, correndo
atrás dos covardes que preferiram se enfiar em suas máquinas e escapar da
peleja. E um desses malditos trouxe o
inferno para terra. Na pressa da fuga, sem saber ao certo como pilotar aquelas
armaduras malditas de metal e que sangravam sangue negro, ele deixou que ela
tombasse e caísse sobre uma quantidade enorme de barris de metal. Estes barris
armazenavam o sangue negro das maquinas. Este sangue negro logo entrou em
combustão quando a armadura do maldito se desfez em uma bola de fogo e fumaça. O
fogo gerado era estranhamente mais quente do que o comum e fazia com que a pele
ardesse muito mais, os olhos lacrimejavam e ele continuava a queimar mesmo
quando estavam longe dele. A vitória fora alcançada, mas todos iriam perecer
ali, consumidos pelas chamas do sangue negro. Os malditos haviam caído, mas não
sem antes derramar sua podridão sobre todos. Como um ultimo recurso, dois
integrantes do grupo que possuíam dons extra terrenos, riscaram o chão da
maneira que puderam e mandaram que largássemos tudo o que tivéssemos
entrássemos ali, na porta que haviam acabado de escancarar. Mas, devido a
pressa, deveriam fazê-lo em sua menor forma, como lobos. Não havia outro meio e
assim foi feito. Saim foi quase um dos últimos, devido a fumaça inalada já
estava tonto e teve grande dificuldade em se manter como lobo, apenas lembra-se
de ter cambaleado até a abertura no chão e se jogado sobre ela, quase como se desmaiando
sobre uma cama...
As lembranças voltaram fortes. Ele sentiu s olhos
lacrimejarem, só de recordar do arder da fumaça. Cerrou as mãos, ferindo suas
palmas com as garras e soltando um longo uivo de pesar pelos companheiros
desaparecidos. Agora estava claro, ele estava em algum lugar da umbra, mas não
sabia onde e nem como sair de lá. Após o uivo, ele parou para escutar, nem mesmo
um eco como resposta. Aquilo o frustrou demais. Quebrado pela lembrança da
morte dos amigos, isolado de todos os sobreviventes e em um local totalmente
desconhecido em outra dimensão, Saim apenas se sentou, com a cabeça entre as
pernas, afagou os chifres e respirou fundo. Pelo menos ali o ar estava muito
mais limpo. Fechou os olhos e mais uma vez viu seus amigos morrendo, um a um
por conta de uma traição. Orou à mãe Terra, para que ela o guiasse, para que
ele pudesse ter um meio de sair dali. E, por mais que ele tentasse, a cena de
morte não saia de sal cabeça e a medida que orava, sentia seu coração cada vez
mais pesado e negro de fúria. Ela tomava conta de seu corpo, fazendo com que
seus músculos tivessem espasmos. Sua vontade era atar o ar a sua frente, era
correr, correr como se fosse rodar todo o mundo assim. Quando se u coração já
estava pulsando em um ritmo alucinante, quando ele conseguia ouvir o pulsar do
sangue fervente em suas veias, não aguentando mais a angustia daquele lugar inóspito,
simplesmente correu.
Levantou-se em um salto e se pôs a correr! Corria e gritava
de forma ensandecida. Como um animal prestes a atacar sua presa. Mas que presa?
Saim apenas correu descendo uma enorme duna. Sua mente estava turva pela dor da
perda dos companheiros e pela fúria da frustração daquele lugar maldito. A
medida que avançava sua velocidade aumentava, em alguns momentos parecia que
suas pernas não iriam conseguir acompanhar o ritmo da descida, mas ele imprimiu
mais força esse manteve no ritmo. A dor de cabeça voltou, mais forte ainda.
Aquilo o encheu de ódio e ele gritou, rosnou como uma besta. Tamanha era o seu
desprendimento com a realidade que por um instante ele pensou ter visto suas
patas entrarem em combustão. Era como se fagulhas saltassem de suas pernas. Não
podia ser, mas era. Ao perceber aquilo, ele tentou correr mais rápido e
conseguiu. Agora estava subindo uma duna, mas sua velocidade só parecia
crescer. Era como se estivessem crescendo pelos de fogo sobre seu corpo, ele
estava se acendendo como uma tocha. Tudo ao seu redor eram chamas, mas ele não
sentia seu calor, elas apenas faziam com que ele se sentisse mais e mais forte.
A essa altura o cume da duna se aproximava, mas isso não o
preocupava. Saim queria atingir os céus. A poucos metros da sua pista arenosa, ele
percebeu que não possuía mais braços ou pernas, era agora apenas o fogo. Fogo
somado a consciência, que pulsava e acelerava, deixando um rastro de fogo
vítreo por onde seguiu. Ao alcançar o ponto mais alto, ele ascendeu aos céus,
subiu tão alto que ao longe tudo não passava de uma imensa massa negra indistinguível.
Subiu até o ar não existir, até não ser possível ver o chão, até não ver mais
nada se não o vazio. Seu corpo ainda era só o fogo, mas agora começava a
diminuir. Aos poucos o fogo se extinguia, dando lugar novamente a seus ossos, músculos
e pele enrugada.
Por um instante, assim que o fogo se pagou, ele teve a
sensação de estar flutuando dentro de um útero. Saim nada via, nada ouvia e nada
sentia. Não conseguia se mover, não sentia frio nem calor, não respirava
direito e toda noção de tempo espaço desapareceu. Não soube dizer quanto tempo
ficou assim, mas numa mudança abrupta de cenário começou a mudar. Era como se
um pessoa o estivesse puxando, como se alguma coisa o estivesse atraindo. Sim,
definitivamente estava sendo arrastado. Cada vez com mais força e... Não, não
estava sendo puxado ou arrastado, estava caindo. Cada vez mais rápido, o ar
passava por ele de forma tão forte que a pressão da queda fez com que ele não
conseguisse respirar e por uns instantes perdeu parcialmente a consciência. A
sensação que teve era de que havia apenas piscado, mas quando abriu os olhos
sentiu água em todo seu corpo. Rapidamente chegou ao fundo, recobrou os
sentidos e aproveitou o chão rochoso para se impulsionar de volta para a superfície.
Finalmente, quando conseguiu por os cofres para fora da água
percebeu que estava de noite. Luna ainda estava no céus, umas poucas nuvens
vagavam e o céus estava qualhado de estrelas. Ele precisou nadar uns poucos
metros até chegar na praia. A vegetação era baixa e pode ver ao longe uma mata
densa. Do meio dela um torre de fumaça negra. Era Agreva que ainda ardia com as
chamas tóxicas. Saim estava próximo do local de onde tinha partido. Sendo
assim, não estava longe de casa. E se ele havia voltado, os outros também
haveriam de voltar. Chacoalhando violentamente o corpo, se livrou da água que o
encharcava e da areia grudada em sua pele.
Areia negra... Quando Saim se deu conta de que a areia
grudada em seu corpo era completamente diferente d areia da praia, ele teve
certeza que ele não esteve lá todo o tempo. Agradecendo a mãe Terra pelo
auxílio, voltou a correr, agora sentindo a vegetação do litoral sob seus pés e
em poucos minutos já estava avistando as árvores da mata. O solo estava coberto
por folhas e ele já podia sentir cheiro de podre dos inimigos. Um lutador
precisa retornar para terminar suas batalhas, por mais que estivesse sozinho,
se ele precisava retornar para curar as feridas abertas por aqueles bestiais em
sua deusa. Saim partia solitário para o final de sua sina.